quarta-feira, 28 de novembro de 2012

I




O chamado foi recebido às 3 horas da manhã, em plena madrugada de sábado.
Há muito não recebíamos um 121. Dirigi automaticamente ao local indicado no rádio.
E, ao entrar no número 407, a visão tornava-se vermelha, como se um filtro houvesse sido acoplado aos nossos olhos. Pouco se podia distinguir da mobília rústica do pequeno apartamento.
No momento tudo estava e não estava. A equipe, simplesmente desnorteada, não sabia por onde iniciar a perícia. Em um lugar aonde a taxa de homicídios intencionais é inferior a 1%, o circo feito pelo suposto assassino era de se preocupar.

Ao lado da porta de entrada, havia um banco. Em cima do banco, uma bíblia aberta e o seguinte versículo grifado em vermelho: 'Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dessa não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.'
A boca dela havia sido selada com folhas de uma árvore que, ao serem catalogadas como evidências, foram reconhecidas como pertencentes a uma macieira de Sodoma. Curiosamente, uma árvore dada como impura pelos judeus. Seus olhos, cobertos por uma venda vermelha, permaneciam abertos para sempre. Afinal, suas pálpebras haviam sido cerradas, assim como suas mãos, dispostas uma em cada lado da cama, paralelas ao seu corpo nu.
Uma delas, do lado direito, foi manipulada para que apontasse para a outra, que guardava uma nota escrita em papel preto com letras brancas. Lia-se: 'Na sinceridade do meu coração e na inocência das minhas mãos fiz isto.'

Com o quê estávamos lidando?
Muitos profissionais altamente graduados, décadas de carreira, tiveram de sair correndo e acabaram encharcando os corredores do prédio de vômito. As paredes estavam repletas de sinais, a princípio não identificados. Tudo foi fotografado para a análise posterior. Reconhecemos apenas a estrela de Davi, acima da cabeceira da cama de madeira escura. Ao lado, no papel de parede mofado, havia um " PAREM-ME", escrito em sangue. O estado de choque dominava a todos.
Ou quase todos, como espero ter a oportunidade de contar.

Ela, de braços abertos, mesmo sem as mãos. Pernas arqueadas, mesmo que a única "caminhada" que fará agora, será até a própria sepultura. Havia completado 27 anos três dias antes de sua morte. Era a nova professora de filosofia da faculdade local. Sua família vivia em outro estado. Estava só, mas claramente havia sido acompanhada.
Pensei novamente na parte inicial do versículo grifado:
' Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dessa não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.'

Era a primeira peça do quebra-cabeça.

...

domingo, 11 de novembro de 2012

PODIA TÊ-LA SALVO...


Sim, podia tê-la salvo.
Diziam revoltosos e sem entender a razão de minha súbita paralisia.
O corpo estava ali, fitando o firmamento, como era seu costume em dias de sol. Sempre gostou de procurar figuras na nuvens. Os olhos abertos, ignoravam a morte. Estava ainda ali, de alguma forma, esperando o amanhecer que traria a claridade necessária para seu passatempo juvenil.
Podia tê-la salvo. Caro seria o preço que eu haveria de pagar por ter impedido o prematuro agir do Tempo. Creio que, ao medir todas as possíveis consequências, racionalizar sua existência e o que poderia ainda conquistar, perdi os movimentos.
Fiquei ali por horas. Primeiro as luzes da ambulância, com sua sirene que, assustadoramente, não tinha forças suficientes para cobrir o silêncio que no momento era a maior parte de mim. Depois, seu frágil corpo sendo carregado por todas aquelas mãos estranhas. De onde surgiram? Quem os chamou? Não pude ver.
Podia distinguir, em meio a todo o ambiente alucinógeno, vozes distantes que me cobravam a redenção de sua alma.
-Sabe, sim, podia tê-la salvo.
Repetiam ainda revoltosos.
Mas ali já não haveria costumes ou dias de sol.
Somente as nuvens estariam ali, como testemunhas mudas da partida de sua velha amiga, que passava horas a admirá-las e dar a elas formas e vida. Comparando-as a coelhos, gatos, dragões e cavaleiros alados.
Olhos brilhantes.Um brilho que, estranhamente, só pude ver novamente no momento de sua morte.
Gosto de imaginar que, naquele milésimo, sua consciência foi transportada e ela viu-se diante de tudo aquilo que formou nas nuvens. Um ambiente só seu, com cavaleiros, leões, gatos e seus outros amigos. Assim, sinto-me menos culpado por não ter parado aquele disparo que, aliás, supostamente era direcionado a mim.
É melhor pensar que a privei de uma vida em constantes falhas e decepções em meio aos homens e a proporcionei uma viagem a um dos palácios dos muitos reinos de nosso Pai. Lá está, em paz.
A ambulância seguiu seu caminho. Aquele foi o adeus.
Eu e os outros, aniquilados por meu mutismo, partimos sem que nossa presença fosse notada pelos que a tentaram resgatar. Eles, mensageiros, estavam certos.
Podia ter salvo sua vida.
Porém, ao olhar para o mundo de hoje do pico desse monte, vejo que de certa maneira eu o fiz.
Eu a salvei da vida na Terra.
Ou não.
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