Assistir ao vídeo
deixado por ele era comprovar a fragilidade da vida. Enquanto EU SOU fazia uma
incisão e abria o peito daquele pobre professor, ainda vivo, o homem paralisado
e desmembrado chorava. Sabia que era seu
fim. Dizia desesperadamente, enquanto sentia o bisturi abri-lo e o sangue
quente molhar sua pele fria: ‘ Chega. Não continuaremos com os planos’. Não
teve voz por muito tempo. Afinal, aquela
luva negra retirou-lhe o coração que, por algum tempo, ainda bateu ansiando por
viver um pouco mais nas mãos daquele monstro. O outro homem, de mãos amarradas
tentava gritar, assombrado, mas sua mordaça não lhe permitia. Assistiu o amigo
partir. EU SOU posicionou o coração nas mãos daquele ‘sem vida’, quase
carinhosamente. Sua destreza era admirável. Ficou claro que tinha conhecimentos
cirúrgicos. Após tirar-lhe o órgão,
limpou cuidadosamente o instrumento e passou a trabalhar em seu rosto. Polegada
por polegada, cortou. O sangue esvaía-se pelo corpo desfalecido e por todo o
chão. De alguma forma estávamos aliviados por aquilo estar sendo feito após a
morte. Retirou cuidadosamente aquela
‘máscara’, pois não desejava que fosse danificada. Isso teria estragado a
beleza de sua obra de arte. Abaixou o
rosto do coitado e deixou-o olhando para o corção, que já havia desistido de
trabalhar, percebendo que não havia mais nada a bombear. Ali ficou o corpo.
Sentado na poltrona, procurando por vida.
Levantou-se, virou-se
para o segundo homem e, durante todo o vídeo, foi a única vez em que ele falou.
Disse: ‘Tenho um novo rosto para você, víbora’.
Aquela voz satânica era um indício do fim. EU SOU deixou a ‘máscara’
repousar um instante sobre a cama, encaminhou-se até ficar em frente ao homem,
abaixou-se e tirou-lhe a mordaça. ‘Isso não parará toda a Ordem’, gritou. Nesse
momento soubemos que o homem conhecia seu carrasco. O assassino gargalhou e, em
um único golpe, torceu-lhe o pescoço. Matando-o instantaneamente. Pegou a
‘máscara’ e vestiu-a no morto. Sua ‘passagem’ havia sido mais rápida, pois havia
uma raiva implícita no ato do golpe. Um assassino que agiu tão calmamente
durante todo o processo, parecia haver mudado de postura. Talvez houvesse uma
verdade que o incomodou nos últimos ditos do professor. Era a vez do terceiro e
último.
EU SOU ficou de frente para a câmera e a pegou
em suas mãos cobertas, andou tranquilamente até o banheiro, filmando o caminho.
Colocou-a sob um tripé previamente preparado.
Na banheira estava o último dos coitados, também amordaçado. Vimos o
pavor em seus olhos. A água que o mantinha submerso, antes cristalina,
amarelava-se pela incontinência urinária que o medo provocava. O assassino
estava concentrado, amolando um punhal que refletia um brilho intenso, enquanto
o homem olhava-o, sabendo ser sua última visão. Ele viu a morte personificada.
Vestia uma túnica vinho e tinha medidas descomunais. O monstro, cansado do jogo
com o punhal, ajoelhou-se e tirou a mordaça do homem, que despejou suas últimas
palavras: ‘Sabia que viria. Faça o que tem de ser feito’. O contraste entre as
posturas dos 3 homens era quase cômico. Um clemente, o segundo determinado e o
último, receptivo. EU SOU perfurou-lhe a jugular e levantou-se, assistindo a
água amarelada tornar-se vermelha. Um vermelho mais do que vivo, ironicamente cheio
de morte.
Pegou novamente a
câmera e também o tripé, voltou para a sala e centrou-se em preparar a cena que
já foi narrada. Tirou de uma grande mala preta o telão e posicionou-o no canto
paralelo à janela. Creio que conectou a câmera a um projetor, pois a imagem
foi automaticamente mostrada na tela. Essa parte não estava em nosso campo de
visão. Deixou suas mensagens na parede e na cama, como já foi dito. Guardou
seus pertences na mala. Porém, antes de
partir, tirou dela um CD, colocou-o no aparelho de som, apertou o Play,
aumentando o volume ao máximo. Sarcástico, acenou em despedida para a câmera e
vimos seus olhos novamente. Pupilas vermelhas tão marcantes. Saiu pela janela,
deixando atrás de si apenas os corpos sem vida e o mórbido Réquiem. Uma
sinfonia de morte.
Seu vídeo tinha mais
de uma hora. Somado ao tempo em que ele deve ter demorado a imobilizar os três,
mais o tempo em que o vizinho demorou em acionar-nos, chegamos durante a plena
reprodução dos assassinatos em tela. Um filme de terror real. Matematicamente
planejado. Não pudemos nem ao menos rastrear aonde os aparelhos tecnológicos usados
foram comprados. Os números de série haviam sido raspados. Haviam sido deixados
como ‘brindes’, por nossa estada em seu museu de espalhamento de sangue e
morte.
Obviamente, apesar de
termos ido para nossas casas, não pudemos dormir tranquilamente. Ele estava
solto e os jornais propagam em suas manchetes a cultura do terror. Seus olhos
estampados na capa. As primeiras linhas, especulativas, questionavam as
autoridades e acusavam-nos de incompetentes. Por todas as ruas notávamos
olhares furtivos. Qualquer um poderia ser a próxima vítima. Pensando bem, não
seria qualquer um. ‘Quem era ela? Quem
são eles?’. Foi pensando nisso que soube que a resposta para essa pergunta
encontrava-se na Faculdade. Saber o que é a ‘Ordem’ era a próxima peça. Peça
valiosa que nos foi dada por um homem morto. Investigaríamos a vida dos
professores, mas antes era preciso esperar o amanhecer. Afinal, somente EU SOU
gostava de ‘trabalhar’ durante a madrugada.
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