segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

IV



Assistir ao vídeo deixado por ele era comprovar a fragilidade da vida. Enquanto EU SOU fazia uma incisão e abria o peito daquele pobre professor, ainda vivo, o homem paralisado e desmembrado chorava.  Sabia que era seu fim. Dizia desesperadamente, enquanto sentia o bisturi abri-lo e o sangue quente molhar sua pele fria: ‘ Chega. Não continuaremos com os planos’. Não teve voz por muito tempo.  Afinal, aquela luva negra retirou-lhe o coração que, por algum tempo, ainda bateu ansiando por viver um pouco mais nas mãos daquele monstro. O outro homem, de mãos amarradas tentava gritar, assombrado, mas sua mordaça não lhe permitia. Assistiu o amigo partir. EU SOU posicionou o coração nas mãos daquele ‘sem vida’, quase carinhosamente. Sua destreza era admirável. Ficou claro que tinha conhecimentos cirúrgicos.  Após tirar-lhe o órgão, limpou cuidadosamente o instrumento e passou a trabalhar em seu rosto. Polegada por polegada, cortou. O sangue esvaía-se pelo corpo desfalecido e por todo o chão. De alguma forma estávamos aliviados por aquilo estar sendo feito após a morte.  Retirou cuidadosamente aquela ‘máscara’, pois não desejava que fosse danificada. Isso teria estragado a beleza de sua obra de arte.  Abaixou o rosto do coitado e deixou-o olhando para o corção, que já havia desistido de trabalhar, percebendo que não havia mais nada a bombear. Ali ficou o corpo. Sentado na poltrona, procurando por vida.
Levantou-se, virou-se para o segundo homem e, durante todo o vídeo, foi a única vez em que ele falou. Disse: ‘Tenho um novo rosto para você, víbora’.  Aquela voz satânica era um indício do fim. EU SOU deixou a ‘máscara’ repousar um instante sobre a cama, encaminhou-se até ficar em frente ao homem, abaixou-se e tirou-lhe a mordaça. ‘Isso não parará toda a Ordem’, gritou. Nesse momento soubemos que o homem conhecia seu carrasco. O assassino gargalhou e, em um único golpe, torceu-lhe o pescoço. Matando-o instantaneamente. Pegou a ‘máscara’ e vestiu-a no morto. Sua ‘passagem’ havia sido mais rápida, pois havia uma raiva implícita no ato do golpe. Um assassino que agiu tão calmamente durante todo o processo, parecia haver mudado de postura. Talvez houvesse uma verdade que o incomodou nos últimos ditos do professor. Era a vez do terceiro e último.
 EU SOU ficou de frente para a câmera e a pegou em suas mãos cobertas, andou tranquilamente até o banheiro, filmando o caminho. Colocou-a sob um tripé previamente preparado.  Na banheira estava o último dos coitados, também amordaçado. Vimos o pavor em seus olhos. A água que o mantinha submerso, antes cristalina, amarelava-se pela incontinência urinária que o medo provocava. O assassino estava concentrado, amolando um punhal que refletia um brilho intenso, enquanto o homem olhava-o, sabendo ser sua última visão. Ele viu a morte personificada. Vestia uma túnica vinho e tinha medidas descomunais. O monstro, cansado do jogo com o punhal, ajoelhou-se e tirou a mordaça do homem, que despejou suas últimas palavras: ‘Sabia que viria. Faça o que tem de ser feito’. O contraste entre as posturas dos 3 homens era quase cômico. Um clemente, o segundo determinado e o último, receptivo. EU SOU perfurou-lhe a jugular e levantou-se, assistindo a água amarelada tornar-se vermelha. Um vermelho mais do que vivo, ironicamente cheio de morte.
Pegou novamente a câmera e também o tripé, voltou para a sala e centrou-se em preparar a cena que já foi narrada. Tirou de uma grande mala preta o telão e posicionou-o no canto paralelo à janela. Creio que conectou a câmera a um projetor, pois a imagem foi automaticamente mostrada na tela. Essa parte não estava em nosso campo de visão. Deixou suas mensagens na parede e na cama, como já foi dito. Guardou seus pertences na mala.  Porém, antes de partir, tirou dela um CD, colocou-o no aparelho de som, apertou o Play, aumentando o volume ao máximo. Sarcástico, acenou em despedida para a câmera e vimos seus olhos novamente. Pupilas vermelhas tão marcantes. Saiu pela janela, deixando atrás de si apenas os corpos sem vida e o mórbido Réquiem. Uma sinfonia de morte.  
Seu vídeo tinha mais de uma hora. Somado ao tempo em que ele deve ter demorado a imobilizar os três, mais o tempo em que o vizinho demorou em acionar-nos, chegamos durante a plena reprodução dos assassinatos em tela. Um filme de terror real. Matematicamente planejado. Não pudemos nem ao menos rastrear aonde os aparelhos tecnológicos usados foram comprados. Os números de série haviam sido raspados. Haviam sido deixados como ‘brindes’, por nossa estada em seu museu de espalhamento de sangue e morte.  
Obviamente, apesar de termos ido para nossas casas, não pudemos dormir tranquilamente. Ele estava solto e os jornais propagam em suas manchetes a cultura do terror. Seus olhos estampados na capa. As primeiras linhas, especulativas, questionavam as autoridades e acusavam-nos de incompetentes. Por todas as ruas notávamos olhares furtivos. Qualquer um poderia ser a próxima vítima. Pensando bem, não seria qualquer um.  ‘Quem era ela? Quem são eles?’. Foi pensando nisso que soube que a resposta para essa pergunta encontrava-se na Faculdade. Saber o que é a ‘Ordem’ era a próxima peça. Peça valiosa que nos foi dada por um homem morto. Investigaríamos a vida dos professores, mas antes era preciso esperar o amanhecer. Afinal, somente EU SOU gostava de ‘trabalhar’ durante a madrugada. 

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