quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Na pele do gadareno



            Mais uma vez estou em meio aos restos mortais dos que já partiram para a eternidade. Vejo tudo como fruto de uma luta insana que perdura por gerações. Habito em meio aos sepulcros. O cheiro dos mortos tornou-se o cheiro da manhã. As catacumbas abertas são meu lar.
            Não quero que me olhe com medo. Não quero que me odeiem. Quero amor. Quero ser amado. Eu quero viver a Boa Nova. Eu quero sentir um amor que me faz bem. Prender-me em correntes não vai adiantar nada. Eu quero liberdade. Eu quero paz!
            Sou atormentado constantemente por seres desalmados. Sou atormentado por horrores constantes. Habito em várias tumbas, e meu perfume é a fétida essência de morte. Minha pele, cheia de buracos ocasionados pelo êxtase da minha agonia.
            Minha voz, rouca de tanto gritar. Gritar palavras de socorro cujos resultados são inúteis. As pedras, vermelhas por natureza, possuem uma crosta negra de sangue podre por cima. Sangue meu, derramado por mim, no êxtase da minha agonia.
            Me autoflagelo para que isso saia de dentro de mim. Busco uma dor física que supere a dor interna, tudo para esse ser parar de me dominar. Quero fugir dele, mas ele me domina cada vez mais. O pior é que ninguém me entende. Ninguém me ama mais. Acham que isso vem de mim, mas não sou eu!
            Foi assim que tudo começou: sentado no ócio da minha infância, deitado num berço, que muitos diziam ser esplêndido. No ócio. No vazio indefinido. No silêncio fez-se ecoar os gemidos horripilantes dos meus algozes. Na oficina vazia, no terreno desabitado, houve a invasão.
            Ratos, moscas e as demais pragas perfuraram as paredes e invadiram meu coração, e o transformaram em terreno perigoso onde poucos querem acessar. Ninguém quer chegar perto das vítimas dos invasores do ócio, eles tem medo de mim.
            É isso que sou, sou vítima. Fui eu o atacado, fui eu o atingido, fui eu o possuído. Quem dera que meus olhos pudessem repousar em paz quando fechados! Quem dera que alguém demonstrasse amor por mim! Amor que me alimentasse e me fizesse produtivo.
            Pobres humanos! Acham que ao matar o corpo se destroem as ideias. Acham que é aparando as folhas que se mata a raiz. Vocês não sabem o quão inúteis são suas correntes! O meu tormento é maior que isso. Não vai adiantar de nada.
            Em momentos repentinos minha mente se controla. Ainda há esperança para subjugar-me a mim mesmo. Nos momentos em que penso, minha mente apresenta um leve indício, uma grátis amostra da utopia da paz. É só uma amostra. Antes eu tinha base. Antes eu tinha um bom começo, mas não tenho mais. A base que deveria ser a família me jogou longe.
            Ainda posso me libertar? Quando tento afastar de mim tudo o que me fere a alma, esses seres desalmados me trazem à memória tudo de novo. Quando tento ter paz, entro em conflito de novo. Por que ainda é assim?        O nascer do Sol não me ilumina mais. Os amores nãome encantam. O que me resta é esse tédio. O que me resta é essa dor. Até quando será assim?
            Com o coração angustiado eu caio e choro. Choro fumaça. Sim, choro fumaça branca, de lágrimas evaporadas. Choro uma fumaça esquentada pelo calor da minha dor. Um vapor mais gritante e molhado que água salgada.
            Vamos! Acabe logo com isso! Se na morte há alívio, me alivie! Venha e me faça deixar esse mundo de lado. Ouço vozes. Ouço ruídos. Ouço um mundo me ameaçando por algo de que não tenho culpa. Minha única culpa foi estar no ócio e ser inofensivo demais.
            Um fogo me queima, e, pelo andar da carruagem, um fogo me queimará eternamente. A morte bate à porta e me chama para sair com ela. Estou com medo.  Estou sozinho nessa.
            Ao olhar para os que aparentam me amar, vejo no fundo de seus olhos que eles estão todos rindo de mim. Estão esperando que eu fuja para tomarem meu espaço. Não estão em meu favor. Eles querem que eu morra. Estão contra mim!
            Mesmo que eu esteja quase enlouquecendo, por favor, não desistam de mim. Minhas chagas cheiram mal, meus acompanhantes noturnos matam, roubam e destroem. Mas eu quero fugir daqui! Libertem-me, por favor! Se ainda há alguém me ama, por favor, se manifeste rápido. Senão só vai me restar o fogo eterno.
            Quantos assim não existem por aí? Pessoas dominadas. Dominadas por vícios. Atormentadas por medos e pensamentos macabros. Pobres gadarenos. Usuários de drogas, esquizofrênicos, enfim, de tudo, um pouco. E a minha pergunta a todos é: Onde está o amor?
            Abri o Livro Sagrado. Eu li cada palavra dele. Acabei me deparando com a história do gadareno. Quis entender o porquê de ele habitar em catacumbas abertas. Quis explicar os problemas que levam um homem a chegar ao mais baixo nível que um humano pode chegar. Na tentativa de explicar isso, confesso, não quero estar nessa pele. Pele de um possuído, pele de um pobre gadareno.

Ozni Coelho

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